É comum pensarmos que o aprendizado começa quando a criança entra na escola ou, quando muito, que se inicia com o nascimento. No entanto, pesquisas das áreas de biologia evolutiva e psicologia cognitiva estão começando a mudar esse panorama e a estabelecer uma nova visão sobre a importância do período que passamos no útero.
Muito mais do que uma mera espera para o grande evento que seria o nascimento, a gravidez começa a ser reconhecida como um importante período em si mesmo, que pode influenciar substancialmente a nossa vida futura, inclusive a nossa aprendizagem.
Denominado pelos especialistas ‘origem fetal’, esse novo campo de conhecimento vem se desenvolvendo rapidamente ao longo dos últimos 20 anos
Denominado pelos especialistas 'origem fetal’, esse novo campo de conhecimento vem se desenvolvendo rapidamente ao longo dos últimos 20 anos, sobretudo em relação à área de saúde. Alguns dos resultados obtidos já permitem relacionar determinadas condições vividas pelo feto a doenças que ocorrerão em sua vida adulta. A deficiência nutricional, por exemplo, relaciona-se à ocorrência na vida adulta de problemas como hipertensão, obesidade e resistência à insulina.
Mas o que dizer em relação à educação? Também para essa área os resultados de pesquisa e, principalmente, a discussão que se trava no campo da ‘origem fetal’ são interessantes, embora pouco debatidos entre nós. Com base neles, é possível perceber, por exemplo, que algumas de nossas concepções precisam mudar, a começar pela nossa ideia de quando deve se iniciar a aprendizagem.
Também deve mudar a forma como tratamos os recém-nascidos ou as crianças bem pequenas. Afinal, se a aprendizagem começa ainda quando estamos no útero, mesmo recém-nascidos já possuiriam um conjunto de conhecimentos sobre o mundo que deveria ser levado em conta por aqueles responsáveis por dar prosseguimento e estimular as suas aprendizagens futuras.
Apenas cuidar?
Não caberia mais, portanto, a ideia ainda disseminada entre nós de que não devemos nos preocupar com o assunto quando se lida com recém-nascidos e bebês. Ou, ainda, que não é necessária a formação pedagógica (e de qualidade) para quem lida com essa faixa etária ou trabalha em berçários e creches, pois a função nesses casos seria apenas ‘cuidar’, não propriamente ensinar.
O que, de fato, os resultados de pesquisa estão nos indicando é algo bem diferente: somos aprendizes vorazes, sobretudo na infância (e, como estamos nos dando conta agora, também na vida intrauterina). Mas a aprendizagem, seja no ventre materno ou fora dele, ocorre em estreita interação e dependência dos estímulos que provêm do ambiente, incluindo-se aí – e de maneira muito especial – as pessoas com as quais nos relacionamos nessas fases fundamentais da aprendizagem.
Em termos de educação há, portanto, lições a se tirar dessas pesquisas, e uma delas, essencial, é que as aprendizagens na infância podem se tornar mais adequadas, servindo de incentivo à continuidade da curiosidade e do desejo de aprender também ao longo da adolescência e da vida adulta. Isso se os conhecimentos prévios e as predisposições que trazemos da vida intrauterina forem mais bem conhecidos e compreendidos por pais e profissionais da área.
O que sabemos antes de nascer?
No livro
Origens: como os nove meses anteriores ao nascimento moldam as nossas vidas (Editorial Presença, 2012), a jornalista especializada em ciência e educação
Annie Murphy Paul faz um apanhado dos resultados de pesquisas realizadas nas últimas duas décadas com o objetivo de verificar a influência do período de gestação e das condições vividas nos meses que passamos no útero sobre nossa vida futura, principalmente sobre nossa saúde, temperamento e aprendizado.
De modo geral, como relata a autora, os resultados mais expressivos dizem respeito ao desenvolvimento dos órgãos dos sentidos e ao aumento de nossa capacidade de perceber, organizar e interpretar os estímulos que captamos do ambiente.
Ao longo do desenvolvimento fetal, relata Paul, os sentidos tornam-se gradativamente disponíveis, suprindo o cérebro, também em rápido desenvolvimento, com informações sobre ‘o mundo que nos aguarda’. Essas informações, por sua vez, consolidam-se como padrões de identificação e decodificação de estímulos, configurando nossas primeiras memórias e aprendizagens.
- Recém-nascidos reconhecem a voz materna e humana, e demonstram preferência por elas até quando comparadas a outros sons com propriedades acústicas similares. (foto: Guenter M. Kirchweger/ Sxc.hu)
O exemplo mais didático e menos distante de nós encontra-se na avidez ou aversão por certos alimentos. Afinal, praticamente toda família tem um caso desse tipo para relatar, como o da mãe que consumiu muito suco de melancia na gravidez e teve um filho ‘viciado’ na bebida ou de outra que teve uma experiência negativa com peixe na gravidez e encontra aí a justificativa de seu filho não ‘suportar’ esse tipo de alimento.
O interessante é que essas ideias aparentemente sem sentido ou até tidas como crendices começam a encontrar respaldo científico e a ser reforçadas por dados de pesquisas, nas quais se analisam o ritmo e a intensidade da mamada de recém-nascidos na presença de determinados estímulos ou suas expressões faciais quando expostos a eles.
Qual a possível explicação científica para essas ocorrências? Segundo
pesquisasdiscutidas por Annie Murphy Paul em seu livro, a resposta está no fato de cheiros e sabores serem captados pelo feto e passarem a fazer parte das suas memórias, principalmente a partir do sétimo mês de gestação, quando as papilas gustativas e os receptores olfativos já se encontram desenvolvidos. Ao nascer, portanto, é comum que as crianças demonstrem preferência pelos alimentos consumidos pela mãe na gravidez.
Ideias aparentemente sem sentido ou até tidas como crendices começam a encontrar respaldo científico e a ser reforçadas por dados de pesquisas
Ainda mais interessantes são os resultados de estudos obtidos em dimensões não tão evidentes. Um exemplo está na aquisição de padrões sonoros e da própria linguagem, que também se iniciariam no período fetal, a partir do sétimo mês de gravidez, quando a audição humana encontra-se plenamente funcional.
Como discutem
Anthony Decasper e
Melanie Spence, das universidades da Carolina do Norte e do Texas (EUA), a percepção e o processamento do som, ainda no período intrauterino, são acompanhados pela memorização de padrões sonoros e pelo desenvolvimento de outras importantes habilidades linguísticas, como a capacidade de identificar características acústicas e padrões de ênfase e ritmos. Isso torna o recém-nascido humano capaz de reconhecer e demonstrar preferência por sons ouvidos na vida intrauterina, como a voz de sua mãe, a sua língua nativa e trechos de histórias e canções.
Recém-nascidos não hesitam em reconhecer a voz materna e humana, e demonstram preferência por elas até quando comparadas a outros sons com as mesmas propriedades acústicas (como a própria fala humana reproduzida de trás para frente), afirmam Decasper e Spence.
Aprendizes vorazes e supereficientes
Segundo Aamodt e Wang, o pensamento mais comum ainda é o de que recém-nascidos são ‘tábulas rasas’ ou receptores passivos de ensinamentos, dependendo única e exclusivamente dos conhecimentos que receberão dos adultos depois de nascer. Mas, de maneira muito diversa disso, os dados de pesquisa têm revelado que somos aprendizes inatos e supereficientes, “moldados pela evolução” para interagir e sobreviver em um mundo extremamente desafiante, a começar pelo ‘mundo’ intrauterino.
Ao nascer, argumentam os autores, podemos não possuir as capacidades necessárias para expressar nosso conhecimento, mas isso não significa que ele não exista. Ao contrário, já chegamos ao mundo preparados ou “equipados com um kit básico de ferramentas”, que inclui habilidades essenciais, entre elas as que nos permitem, inclusive, investir na própria aprendizagem.
Qual o porquê de tudo isso? Por que aprender ainda no útero? A resposta, nesse caso, vem da biologia evolutiva.
Como discute Annie Murphy Paul em seu livro, quando um feto capta, processa e memoriza estímulos ou padrões ainda no útero materno, ele está, mesmo que indiretamente, captando e processando informações também sobre o ambiente onde nascerá. Em outras palavras, está se antecipando e se preparando para o mundo em que viverá.
“Todos nós aprendemos sobre o mundo antes mesmo de fazermos parte dele”, diz Paul. Não somos inertes ou passivos, mas criaturas ativas, dinâmicas e muito flexíveis, capazes de responder e nos adaptarmos a diferentes condições que se apresentem.
- Os efeitos da desnutrição sobre 40 mil fetos cujas mães passaram o ‘inverno da fome’, durante a Segunda Guerra Mundial, foram notados imediatamente e também décadas depois. (foto: Bill Davenport/ Sxc.hu)
Nossas mães, por sua vez, são nossas primeiras professoras ou informantes. Sem necessariamente ter consciência disso, elas estão, durante a gestação, nos passando informações e ensinando sobre o mundo em que nasceremos – por exemplo, sobre o que está disponível e é seguro comer; qual a língua falada em nossa comunidade ou quem é ela ou o cuidador em quem podemos confiar.
Esse tipo de aprendizagem, explica a autora, auxilia na sobrevivência do recém-nascido. Ao reconhecer e responder melhor à voz ou a língua materna, por exemplo, um feto amplia a sua ligação com a pessoa que cuidará dele. Ou, ainda, ao antecipar-se na memorização de gostos e sabores e estabelecer precocemente preferências e aversões alimentares, poderá evitar alimentos nocivos ou buscar com mais avidez aqueles de que necessitará quando recém-nascido.
Sem necessariamente ter consciência disso, nossas mães estão, durante a gestação, nos passando informações e ensinando sobre o mundo em que nasceremos
Como “cartões postais do mundo de fora”, exemplifica Paul, “os estímulos recebidos por intermédio da mãe na gravidez informam o feto e o fazem produzir respostas a perguntas críticas para a sua sobrevivência: vou nascer em um mundo de abundância ou de escassez? É um mundo protegido e seguro ou de perigos e ameaças constantes? A vida nesse mundo será longa e frutífera ou curta e desprovida?”
Um estudo detalhado no livro de Paul exemplifica o quanto a aprendizagem intrauterina pode ser significativa. Diz respeito aos efeitos da desnutrição sobre os cerca de 40 mil fetos que estavam em gestação durante o ‘inverno da fome’, provocado quando as tropas alemãs bloquearam o oeste da Holanda, em 1944, durante a Segunda Guerra Mundial.
Possíveis efeitos
Os efeitos da desnutrição sobre esses fetos, como se pode imaginar, foram imediatamente notados. Houve aumento do número de natimortos, defeitos congênitos, baixo peso ao nascer e mortalidade infantil. Mas também houve efeitos que só foram constatados décadas depois, como maior incidência de obesidade, diabetes e doenças do coração entre as pessoas gestadas durante esse período de carestia.
Uma possível explicação para isso, segundo Paul, encontra-se na enorme capacidade do corpo humano de responder ao contexto, procurando adaptar-se fisiologicamente e sobreviver.
Diante da escassez de nutrientes, os fetos submetidos ao ‘inverno da fome’ direcionaram os poucos recursos que tinham ao cérebro, adaptando-se fisiologicamente e garantindo, assim, a sua sobrevivência em curto prazo. Mas, devido à carência inicial de nutrientes, outros órgãos, como o coração e o fígado, se fragilizaram e tornaram-se passíveis de mau funcionamento, sobretudo quando submetidos a um mundo de abundância, para o qual não se encontravam preparados. As doenças observadas nos fetos que sobreviveram a esse regime de fome podem ser encaradas, portanto, como respostas inadequadas a um contexto que não reflete as aprendizagens ou os padrões estabelecidos inicialmente, argumenta a autora.
- Estudo com 1.700 grávidas que tiveram experiências traumáticas durante o atentado terrorista de 11 de setembro de 2001, nos EUA, mostra que seus filhos apresentavam sintomas da síndrome de estresse pós-traumático um ano após o episódio. (foto: Robert Linden/ Sxc.hu)
Outro estudo relatado por Annie Murphy Paul diz respeito a 1.700 grávidas que tiveram experiências traumáticas durante o atentado terrorista de 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos, e ao fato da análise realizada nessas gestantes e em seus filhos um ano após o episódio ter revelado a presença de sintomas da síndrome de estresse pós-traumático também nos recém-nascidos.
Considerando-se a perspectiva da ‘origem fetal’, a explicação para o ocorrido nesse caso, assim como no episódio do ‘inverno da fome’, também é reveladora e, de certa forma, surpreendente. Os pesquisadores acreditam que, provavelmente, os fetos de mulheres grávidas que experimentaram o trauma do atentado foram “informados por suas mães” e se prepararam para um mundo no qual a prontidão, característica do estresse, poderia ser útil à sobrevivência.
Com base nas pesquisas e discussões sobre ‘origem fetal’, é possível perceber que as informações que recebemos de nossas mães ainda no útero podem ser positivas ou negativas
Pense por um instante: características típicas da síndrome do estresse pós-traumático, como a hipervigilância, o distanciamento psíquico e a irritabilidade, podem ser relativamente úteis em um mundo ameaçador, que requer níveis de atenção máximos, mas não se configuram aprendizagens relevantes em um mundo relativamente seguro.
Nesse contexto, ao contrário, essas características seriam desnecessárias ou mesmo representariam um alto custo para quem as possuísse – custo que os pesquisadores consideram que está sendo cobrado dos fetos que passaram pelo ‘inverno da fome’, assim como dos que ‘vivenciaram’ o atentado de 11 de setembro.
Com base nas pesquisas e discussões sobre ‘origem fetal’, é possível perceber que as informações que recebemos de nossas mães ainda no útero podem ser positivas ou negativas. Melhor dizendo, podem ser adequadas ou não diante do contexto em que nascemos ou em nossa vida futura.
Mas tão importante quanto isso é começarmos a nos dar conta de que nossa visão sobre quando e como se dá a aprendizagem precisa ser ampliada. Os dados de pesquisas têm nos mostrado que, de fato, aprende-se sempre, inclusive, antes de nascer.
Vera Rita da Costa
Ciência Hoje/ SP