quarta-feira, 17 de julho de 2013

* Pesquisadora prevê boicote às eleições!

"Não descarto um boicote às eleições", afirma Marcília GamaPara a pesquisadora e coordenadora do projeto intitulado Preservando a Memória da Justiça do Trabalho 1964-1985, faz um balanço sobre a onda de protestos de rua no país

Sílvia Bessa - Diário de Pernambuco
Publicação: 17/07/2013 14:56 

 (Alcione Ferreira/DP/D.A Press)
Um mês após iniciados os protestos que varrem o Brasil, contado a partir do ato de 13 de junho em São Paulo, uma das mais experientes consultoras em acervos públicos e privados de Pernambuco, a pesquisadora Marcília Gama diz: “A onda de protestos já entrou para a história”. Isso porque causou “impacto e perplexidade aos que achavam que a população ficaria inerte, adormecida, alheia indefinidamente aos desmandos praticados contra a nação e seu povo”. Professora e doutora em História vinculada à Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), Marcília tem largo currículo na área de memória, patrimônio cultural, censura, repressão e Ditadura e coordena projeto intitulado Preservando a Memória da Justiça do Trabalho 1964-1985. Nesta entrevista, Marcília Gama faz um balanço dos recentes acontecimentos, afirma que as organizações sindicais e políticas vivenciam um momento novo que se traduz na não aceitação de “migalhas”, e é contundente quando cogita que o movimento visto nas ruas pode ser o início de algo maior que se anuncia. “Não descarto, inclusive, a possibilidade de uma mobilização no sentido de boicote em massa às eleições ou a constatação de um número assombroso de nulidade dos votos”.

Somamos um mês de protestos constantes e pulverizados em todo o Brasil. Que tradução se pode dar a essa manifestação popular?
Para responder essa pergunta, gostaria de citar trechos do trabalho sobre movimentos sociais, de Maria da Glória Gonh, em seu livro Teoria dos Movimentos Sociais, cuja análise acho pertinente. Ela aponta algumas análises desenvolvidas por correntes da teoria clássica americana Interacionista, que encara “os movimentos sociais como uma reação psicológica às estruturas de privações socioeconômicas.” Outra corrente, o Funcionalismo, desenvolvida a partir das ideias de Parsons (Parsons apud Gohn, 2004), possui algumas semelhanças com a teoria Interacionista, e acredita: “que é a inquietação social, assim como períodos de incerteza, de impulsos reprimidos e mal-estar que impulsionam os movimentos sociais. Sempre quando há uma inquietação social a mudança social se torna quase inevitável. Quando hábitos e costumes antes utilizados para resolverem os problemas do povo não funcionam mais, significa que o sistema de controle social está se desintegrando. E por fim, para os teóricos do Funcionalismo, as mudanças sociais ocorrem de maneira natural, levando em conta que aqueles indivíduos oprimidos se opõem à sociedade. Quando esta opressão atinge um ponto de insuportabilidade, estes procuram se unir com um objetivo comum e criam novas instituições”. Quando penso nas manifestações ocorridas nos últimos trinta dias, observo um misto de inquietação, insuportabilidade e, sobretudo um desencanto com a forma como a atual ordem instituída vem conduzindo, gerenciando a nação. E, ao perceber que o governo e seu projeto político não corresponde aos anseios e interesses, sobretudo da classe média, a que recebe com mais intensidade o impacto de uma política econômica e social mal conduzida, então ocorre um desencanto e a necessidade de mudança. Os movimentos sociais que ocorrem no país correspondem ao despertar de importantes segmentos sociais, cujo projeto de governo ainda não contemplou. Tivemos nitidamente programas sociais para reduzir o nível de miséria e pobreza, o que foi um feito louvável e necessário, mas para a classe média, para os profissionais liberais, intelectuais, classe trabalhadora do campo e da cidade, empresariado e segmentos mais esclarecidos da população, muito pouco foi feito de fato. Ainda se espera que o governo cumpra a pauta prevista no primeiro programa do Governo Lula, e isso está na matriz das insatisfações coletivas, permeadas pelo momento de incertezas e o receio de um possível retorno da inflação, e a ameaça do retrocesso de tudo o que se conquistou.

O que mudou na política para que se veja hoje no país tantos brasileiros nas ruas protestando com tantas bandeiras diferentes?
A questão é exatamente essa, não é o que mudou. É o que não mudou é a prática do mesmismo, da enrolação, do empurrar com a barriga, que o povo está dizendo um basta. Soluções que são esperadas desde o primeiro governo Lula e que não foram postas em prática, como a reforma tributária, política, e do uso da terra, a redução da alta carga de tributos, que oneram tremendamente a classe trabalhadora, que não consegue respirar... É a má administração do erário público, que advém também dos impostos recolhidos, o combate à corrupção, e sobretudo a necessidade de manutenção do que já se conquistou. Enfim, são inúmeros problemas que não são fáceis de resolver, mas que precisam de decisão política imediata e como essas decisões não são feitas, o resultado é a profunda insatisfação e descrença com qualquer tipo de representação política, que parece reafirmar a todo tempo para a população, o seu papel pouco compromissado em resolver, encarar os desafios e resolvê-los. O que não quer dizer que se busca colocar em risco a democracia. Pelo contrário, ela é soberana. Os políticos é que têm que entender que os tempos são outros, não podemos mais perder tempo, nem adiar decisões que se espera há décadas.

Semana passada, as centrais sindicais convocaram os trabalhadores e foram às ruas levando um número bem menor de manifestantes do que se viu nas manifestações sem lideranças. É o sinal de que as organizações classistas ganharam um novo papel dentro das lutas pelos direitos dos trabalhadores?
É o sinal de que o povo não quer mais “falsos profetas”, a população não quer tutela de organização e representação que não se coadune com seus ideais, que durante todo esse tempo se mostrou alheia, silenciada, conivente com a situação. As pessoas simplesmente estão saturadas pelo descaso, omissão e anseiam por respostas concretas, soluções imediatas. Não mais apenas propostas, elas desacreditam de intenções e expressam isso de forma espontânea, independente, livre de qualquer tipo de tutela (que veem com suspeita). As organizações sindicais e políticas estão vivenciando algo novo no país e o recado parece bem claro, se traduz num movimento que se diz independente reafirmado na não aceitação de “migalhas”, nem apoios ilegítimos, nem soluções fantasiosas. Esse comportamento parece ser o início de algo maior que se anuncia e o resultado pode ser visto de forma ainda mais perplexa, nas próximas eleições. Não descarto, inclusive, a possibilidade de uma mobilização no sentido de boicote em massa às eleições ou a constatação de um número assombroso de nulidade dos votos, como uma resposta explícita à forma que vem sendo feita a política nesse país.

Tem sido comum se comparar este momento com as campanhas das Diretas e Fora Collor. Há lógica em se estabelecer um paralelo entre esses três momentos e que semelhanças e diferenças deve-se observar no comparativo?
As manifestações nas duas situações anteriores pertencem ambas a um contexto histórico diferente. No entanto, destaco o caráter comum às manifestações que se traduz no desejo excepcionalmente forte, espontâneo, revolucionário e libertador das manifestações que expressam e escancaram nas ruas suas desilusões, anseios e necessidades. As ruas são como um canal, uma válvula de escape, daquilo que não quer calar e que se traduz na profunda insatisfação da forma como estão sendo conduzidos interesses da nação, da coletividade. E um deles, por exemplo, se coloca na constatação do desperdício destinado a projetos que pouco retorno terá para a sociedade, como os altos investimentos em tempo de crise nas arenas da copa no Brasil. E aí, a questão: De todos os projetos políticos prometidos em campanha desde o primeiro governo Lula, o que realmente foi realizado para o país a médio e longo prazo? Que reformas reais em áreas estratégicas foram postas em prática? Qual o planejamento estratégico para a nação, para os próximos 5/10 anos? Que medidas sustentáveis sérias foram e serão tomadas para impulsionar o desenvolvimento efetivo do Brasil? O que a atual classe política tem feito para manter o ritmo de desenvolvimento que foi iniciado? Quais as reais soluções pensadas a curto, médio e longo prazo, para a saúde, educação, habitação, trabalho, justiça e cidadania? Vivenciamos o desencanto das pessoas, a falta de perspectivas no amanhã, que se impõe por sabermos que quase nada foi até agora feito.

De que forma a onda de protestos de 2013 vai entrar para a história?
A impressão que tenho é que essa onda de protestos já entrou para a história, na medida em que causou o impacto e perplexidade aos que achavam que a população ficaria inerte, adormecida, alheia indefinidamente aos desmandos praticados contra a nação e seu povo. Ao adotar a expressão o “gigante acordou”, ressuscitou o imaginário popular calcado na mobilização coletiva e na força do povo que historicamente é revolucionária e que ao mesmo tempo é vista como algo absolutamente necessário para expressar um basta a tudo o que é contrário aos interesses legítimos da nação. Como a voz do Povo é a de Deus, então acreditamos que esse é apenas o início de uma longa e profunda transformação que se anuncia na sociedade ou não. Só faço uma ressalva, para que toda essa manifestação seja feita e percebida com responsabilidade por todos, uma vez que o bem maior e soberano que deve ser preservado é a soberania da democracia que conquistamos a duras penas e estarmos atentos, vigilantes, para que esse canal permitido, inclusive, pelo Estado de Direito Democrático não seja alvo de interesses escusos que atentem contra a estabilidade do regime democrático.

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