Mecanismo sancionado por Dilma prevê inspeções independentes e sem aviso prévio em presídios e pode ser arma contra problema sistemático no país. Implementação por estados é tida por especialistas como grande obstáculo.
A denúncia de tortura de um detento num presídio federal em Rio Branco, no Acre, teve repercussão nacional na última semana. Seis agentes penitenciários são acusados de espancá-lo com marretas de borracha, deixando-o cego e tetraplégico. O caso se junta a outro, de amplitude ainda maior: o do pedreiro Amarildo de Souza, desaparecido desde 14 de julho. Há denúncias de que ele tenha sofrido maus-tratos por parte de policiais militares na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro.
Para que abusos como os denunciados nesses dois casos não aconteçam – sobretudo entre os mais de 500 mil detentos em presídios e delegacias brasileiras – a presidente Dilma Rousseff sancionou na sexta-feira (02/08) a lei que cria o chamado Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, que será composto por membros do poder executivo federal e de organizações da sociedade civil.
O mecanismo cumpre a obrigação que consta no Protocolo Facultativo à Convenção contra Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (OPCAT), ratificado pelo Brasil em janeiro de 2007, que exige dos países-membros a instalação de instrumentos preventivos independentes para prevenir a tortura. De acordo com a Human Rights Watch (HRW), 44 países instituíram esses mecanismos até julho de 2013.
"É um passo importante, até histórico. O problema da tortura no Brasil é, de alguma maneira, uma questão invisível. Ninguém tem dados muito confiáveis de quantas pessoas são torturadas, onde esse ato acontece, mas, em visitas a prisões, sabemos que a tortura é sistemática no Brasil", diz Lúcia Nader, diretora-executiva da ONG Conectas Direitos Humanos. “Há um problema de subnotificação dos casos de tortura. Muitas vezes o preso é torturado e não tem como denunciar, pois tem medo de ser torturado novamente.”
Participação dos estados
Para especialistas ouvidos pela DW Brasil, a eficácia da nova legislação depende das pessoas que vão ser escolhidas para compor o Mecanismo Nacional e, também, da estimulação do governo federal para que os governos estaduais implementem seus mecanismos a nível local. Esse tipo de instrumento já existe em cinco estados – Alagoas, Paraíba, Pernambuco, Espírito Santo e Rio de Janeiro –, mas só neste último ele foi tirado do papel.
“Logicamente, sem uma rede articulada que será esse sistema, é muito difícil que ele dê conta de um país da dimensão como o nosso, não só territorial, mas em relação à complexidade deste problema. Devemos lembrar que a tortura no país não é só perpetrada por agentes do estado, mas também em estabelecimentos privados”, afirma Maria Laura Canineu, diretora da HRW no Brasil.
Para ela, o mecanismo poderá combater a impunidade, já que ele vai dar repercussão nacional aos casos de tortura no país: “Se não há punição, se instaura uma cultura dessa prática. Com o mecanismo, os perpetradores serão expostos para que haja uma investigação séria e uma consequente punição.”
O governo federal submeteu o projeto ao Congresso logo após a visita ao Brasil do Subcomitê de Prevenção à Tortura (SPT), da ONU, em setembro de 2011. No relatório final, o SPT concluiu que a impunidade por atos de tortura estava disseminada no Brasil e que havia um fracasso generalizado na tentativa de levar criminosos à Justiça, assim como pela persistência de uma cultura que aceita os abusos cometidos por agentes públicos a presos.
"Estamos otimistas com a participação dos estados, mas não há um prazo para isso", diz a ministra da Secretaria Nacional dos Direitos Humanos da Presidência, Maria do Rosário. "A constituição do sistema nacional é um reconhecimento de que o Brasil precisa caminhar para superar esse problema. Vamos começar a responsabilizar os agentes públicos que usam essa prática como na época da ditadura militar."
Com a sanção da lei pela presidente, foi criado um comitê composto por 23 membros, sendo 11 do Executivo federal e 12 de organizações da sociedade civil. Com um mandato de dois anos, cada indicado terá a função de monitorar os trabalhos do mecanismo e acompanhar a implementação de suas recomendações. Os cargos não serão remunerados.
O mecanismo será ligado ao comitê e composto por 11 técnicos e peritos com formação superior e experiência na área. Eles serão responsáveis por visitar os locais a fim de monitorar e prevenir a tortura. O trabalho dos peritos será remunerado e eles terão mandato de três anos.
Carta branca
Os peritos terão carta branca para inspecionar, sem aviso prévio, qualquer local de internação de longa permanência e de privação de liberdade, como prisões, clínicas para dependentes químicos, hospitais psiquiátricos, centros militares de detenção, casas de custódia e instituições sócio-educativas para adolescentes.
Os membros do Mecanismo Nacional poderão entrevistar pessoas reservadamente, acessar documentos, além de registrar, através de vídeo, fotos ou áudios, todas as informações que julgarem pertinentes. Eles também podem estar acompanhados de técnicos. Depois de cada visita, os membros do Mecanismo vão ter até 30 dias para entregar um relatório ao comitê, sendo que esses documentos serão públicos. Caso seja necessário, eles também podem abrir processos criminais e administrativos, além de solicitar perícias, sugerir alterações na lei e propor políticas públicas.
"Claro que a lei autoriza os especialistas a entrarem em todos os recintos, mas, como sabemos, existe uma longa distância no Brasil entre aquilo que está na lei e a maneira como esta lei é implementada na prática", analisa Maurício Santoro, da Anistia Internacional no Brasil. "Poderá haver omissão de informações por parte das autoridades locais, uma tentativa de dissociar o trabalho destes peritos e até mesmo intimidações, ameaças, tudo isso é uma possibilidade forte."
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